Causo

 Hermes...

Estalei o rebenque contra a mesa, o couro seco batendo madeira velha. Um estalo só. Mas bastava.

Repito mais alto, já quase gritando, já quase com raiva:
– Eu chamei Hermes. Quem é essa lorpa?

Queria ver quem era. Queria confirmar se era ele. Aquele nome estranho tinha ficado na minha cabeça desde a ficha. E eu sabia — sabia que tinha algo ali. Naquele nome. Na foto. No jeito.

Ele avançou do fundo da sala. Tímido. Pelado. Branquelo.
Bonito.
Merda.

Sou eu.

A voz fina. Insegura. O pescoço comprido, o peito liso. Vi os outros homens olharem, rindo de canto de boca, cutucando-se. Alguns excitados. Todos pelados. Suando. Um curral de gado humano.

Mas ele — ele era diferente.

Sou eu, meu sargento.
Mando repetir. Gosto de ouvir.

Ele repete. Com mais força agora.

As pás do ventilador chiavam ferrugem no teto, mas eu só ouvia a própria respiração. E a dele. Ofegante. Aquele cheiro misturado de cavalo, suor, poeira e mosca. E por baixo, um cheiro outro — medo. Quente. Molhado.

A sala inteira fedia à carne viva. Mas nele o cheiro era outro. Como jasmim nascido no brejo.

E eu odeio isso.
Odeio ele por isso.

Ficou surdo, idiota?

Ele treme. Gosto disso.
O olho dele desvia. Tenta manter o respeito, mas é como se me pedisse alguma coisa que ele mesmo não entende.

A cara dele me irrita.
Ou me atrai. Não sei.

Por que não respondeu quando eu chamei?

“Não ouvi, meu sargento”, ele diz.
A voz falha.
Reprimo o riso.

É fraco. Delicado. Um erro aqui dentro. Um deslocado. E ainda assim...

Tem cera nos ouvidos, pamonha?

Riso geral. Isso os distrai. Me dá tempo.

Olho os homens. O crioulo, o alemão — todos rindo. Mas sei que estão aliviados. O alvo é outro.
Hoje o alvo é ele.

E no rabo?

A tensão cresce. Segundos sem som. Depois os risos voltam, estridentes.

Quero ver se ele treme.

E ele treme.

Mosca passa no rosto dele. Pisca. Eu aviso:
Não pisca, bocó. Só quando eu mandar.

Começo a andar em direção a ele.

Quero vê-lo de perto. Sentir se o cheiro é real. Ou coisa da minha cabeça.

O rebenque vai até o rosto dele, mas não encosta. Desvio no último instante. Acertei minhas próprias botas. Quase ri.

Ele estremece de novo.

A bunda branca dele trêmula à minha frente. Ridícula.
Excitante. Merda.

Sinto a mandíbula travar. O rebenque dança de novo no ar. Não bato. Não ainda.

O retrato de Castelo Branco na parede parece me julgar. Que se dane.

Está com medo, molóide?

Ele responde, hesita. Olho bem de perto.
A pele suada dele, os pelos finos, o cheiro.

A vontade que dá é de rasgar tudo. Ou de ir embora.

Por que eu me importo com esse moleque?

Sen-tido!

O corpo dele enrijece. Gosto de ver.
Cada músculo tensionado. O medo apertando por dentro. A vergonha escorrendo das axilas.

Já vi muito homem nu. Mas esse... esse me olha como se me visse.

Pisoteio o cigarro. Cuspo no chão.
Volto pra mesa. Mas não tiro o olho dele.

Então tu é que é o tal de Hermes?

“Sim, meu sargento.”

Responde certo. Mas não convence. Há uma coisa naquela resposta. Uma coisa que me olha de volta.

Tem certeza?

Ele afirma de novo.

E eu fico pensando naquele nome. Hermes. Mensageiro. Alado. Delicado. Sem lugar aqui. Aqui é pra bruto. Pra animal.

E ele não é.

Mas de onde tirou esse nome?

“Não sei, meu sargento.”

Mentira. Claro que sabe. Todos sabem de onde vêm. Só não têm coragem de dizer.

E eu sorrio. Um meio sorriso.

Quero ver até onde ele aguenta.

Testo. Provoco. Jogo as perguntas como quem afia faca.

Pé chato. Taquicardia. Arrimo de família. Pressão baixa.

Mentirosinho bom.
Mas está se salvando.
E eu deixo.

Vai fazer o quê? Engenharia, medicina?

“Filosofia, meu sargento.”

Silêncio.

Aquilo bate fundo.

Filosofia.

Quase deixo escapar um riso de verdade.
Vai acabar morando num quarto cheio de livro e dúvida. Que nem eu. Mas sem farda.

Acendo outro cigarro. Mãos firmes. Ninguém pode ver o que penso. Nem ele.

Espio a tarde lá fora. O céu tingido de sangue, quase roxo, o sol se despede no Guaíba.

Volto o olhar pra ele. O olhar fixo. Agora firme.
Se eu fosse outro homem...
Mas sou esse. Fardado. Com rebenque na mão.

Pois, seu filósofo, o senhor está dispensado de servir à pátria.

Porque a pátria não sabe o que fazer com gente como você. Nem com gente como eu.

Pode se vestir.

Viro-me pros outros.
E vocês, seus analfabetos... aprendam. Um dia ele vai sair filosofando por aí. E vocês vão morrer pastando.

Ele sai. Devagar. Passo leve.
Folha na brisa.
E eu assisto. Até sumir na porta.

O cheiro dele ainda no ar.

Levanto o rebenque.
Estalo contra a bota. Forte.

Sen-tido! Estão pensando que isso aqui é o cu-da-mãe-joana?!

Mas a frase sai oca.
E eu sei que, hoje, perdi alguma coisa.


Se quiser, posso desenvolver uma versão ainda mais longa ou aprofundar o passado do sargento, explorando mais essa repressão ou uma história de juventude. Deseja isso?


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