Causo

 GARCIA (Visão do recruta)

A sala já tava abafada antes dele entrar. A gente conversava baixo, rindo sem graça, tentando aliviar a tensão do primeiro dia. Mas bastou o som seco da porta batendo pra todo mundo calar na hora.

Ele entrou como quem já sabe que manda. Postura dura, o rebenque pendurado no punho, o olhar que atravessava a gente como faca quente. Caminhou até o centro da sala e parou. O silêncio era tanto que dava pra ouvir o ventilador rangendo no teto.

— O nome é Sargento Barreto — ele disse, com a voz grave, firme. — E aqui dentro, quem respira, me pede permissão.

“Sim, senhor!” — gritamos juntos, mas sem firmeza. A garganta travada de medo, suor escorrendo pelas costas.

Ele começou a falar. Que não era colônia de férias. Que a gente ia suar, rastejar, obedecer sem pensar. O tipo de discurso que a gente esperava, mas mesmo assim doía de ouvir. Porque ali, na frente dele, tudo parecia mais real.

Aí veio a ordem que quebrou o resto da dignidade que ainda tentávamos manter.

— Quero todo mundo como veio ao mundo. Agora. Trinta segundos.

Ficamos parados. Ninguém entendeu se era pra valer. Quer dizer, a gente entendeu, mas não queria acreditar.

— TIRA ESSA ROUPA, PORRA!

Foi aí que começou. Um corre desajeitado de botões sendo abertos, cintos soltando, fardas voando pelo chão. A gente se despia como quem foge de incêndio. Uns rindo, outros com a cara dura, todo mundo tentando não parecer o mais envergonhado da sala.

Fiquei só de cueca. Olhei pro lado. Quase todos ainda estavam. Era tipo um acordo não falado: “Vai até aqui, né?”

Errado.

— Vieram ao mundo de cueca, foi? — ele gritou, avançando sobre dois — um crioulo alto e um loirinho de cara de menino. — Tua mãe pariu com Zorba, por acaso?

O riso veio. Nervoso. Um alívio momentâneo. Porque não era comigo. Ainda.

Os dois abaixaram as cuecas, lentos, vermelhos. O sargento olhava como quem espreme um limão pra ver se ainda tem suco.

E então, pelados todos, a sala ficou diferente. O cheiro mudou. Um misto de suor, poeira, couro. E alguma coisa mais bruta no ar. Algo que vinha do medo.

Foi nesse momento que ele olhou pro fundo da sala. E eu olhei também.

Era o Garcia.

Tava ali o tempo todo, mas só então parece que todo mundo viu ele de verdade. Branquelo, magro, pescoço comprido. Tímido, mas com um jeito estranho... quase calmo.

O sargento bateu o rebenque na mão.

— GARCIA!

A palavra bateu seca. Garcia deu um passo à frente, nu, olhando pro chão. O rosto dele tava pálido, mas o corpo não tremia como o meu.

— Sou eu, meu sargento — ele respondeu, voz baixa.

Naquele momento, todo mundo prendeu a respiração.

Eu também.

Porque dava pra sentir que, a partir dali, o dia ia mudar.

E que o alvo agora era ele.


Se quiser que continue a partir desse ponto — com o foco ainda no recruta observador, ou mesmo mudando o ponto de vista para o próprio Garcia — posso seguir. Quer continuar?

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