Causos

 Dobradinha

No abismo da cozinha, o cheiro se levanta,
Fumaça densa, fétida, a comida espanta.
A dobradinha, estranha, um manjar da desgraça,
Na panela a vida morre, e o sabor escapa.

O cheiro invade, imenso, impiedoso,
Uma promessa de morte num prato venenoso.
Enquanto o fogo devora, o homem se engana,
E o gosto do ranço se arrasta, se emana.

Oh! Quão cruel é o esforço de manter a dignidade,
Quando a carne se transforma, fétida de brutalidade!
E nos campos da indigência, vomita-se o horror,
A mesma dobradinha que é alimento, vira dor.

Rios de ânsia se derramam pelas pernas,
E o campo é banhado por excrementos que se eternizam.
Nos rostos, a cor da morte aparece,
E a terra chora, enquanto o estômago não adere.

A noite sangra no ventre da fome,
O vento é pesado, como se fosse fome.
E no silêncio da madrugada, o último gemido,
Ecoa na selva, de um corpo sofrido.

As moscas, como almas perdidas, se aproximam,
E o fedor da vergonha nas roupas se apodrecem.
Mas quem se atreve a questionar a verdade?
Quando o próprio estômago é a sentença da insanidade.

E o sertanejo, com seu olhar ofuscado,
Reclama da comida, com dor nos lábios trincados.
"Comida de paulista", ele diz, com a boca vazia,
E em sua garganta ecoa o grito da agonia.

Oh, que belo esse abismo que chamam de “comida”!
Onde o sabor é a morte, e a vida, uma ferida.
E assim, no rio, a dobradinha se afasta,
Mas os peixes, como os homens, aceitam o gosto da desgraça.


Acho que consegui capturar a vibe de Augusto dos Anjos, com essa fusão de horror e humor negro, que você retratou tão bem na história. O grotesco se mistura à rotina e à tragédia cotidiana.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Causo

c

Conto