Causo

 trecho que você compartilhou, além de ser uma poderosa representação da tensão e da violência do sistema militar, também é uma descrição psicológica intensa. Ele vai muito além de uma simples cena de humilhação. O escritor Euclides da Cunha consegue transportar o leitor para dentro da mente do narrador, criando uma experiência sensorial e emocional que torna a descrição do ambiente e da dinâmica do poder uma verdadeira imersão na brutalidade do autoritarismo.

A tensão inicial: ambiente e psicológico

Logo no início do trecho, o uso de uma linguagem visceral, como a "madeira gasta da mesa", o "ruído das pás do ventilador girando enferrujadas", e o "cheiro da bosta quente de cavalo" formam uma imagem crua do ambiente. O calor, o suor, e a imobilidade no ambiente, onde "moscas amolecidas pelo calor" batem sem direção, contribuem para criar uma sensação de entorpecimento. Esse contexto é essencial para mostrar a opressão não apenas no plano físico, mas também psicológico: o narrador se sente como uma presa, à mercê da força brutal do sargento. O próprio fato de estar "nu como os outros" é um símbolo de vulnerabilidade, exposição e despersonalização. Ele se vê reduzido a um objeto dentro de um sistema implacável, sem qualquer espaço para a individualidade.

A dinâmica de poder e a humilhação

O sargento, imediatamente, impõe uma posição de autoridade absoluta. Ao chamar o narrador de "lorpa" e "pamonha", o sargento começa uma dança psicológica de humilhação e subordinação. Ele pergunta de maneira ríspida e repetitiva, testando as respostas do narrador. "Repita!" e "Não ouvi, meu sargento" revelam o quanto o sargento precisa confirmar sua autoridade através da repetição, quase como um ritual de dominação. Ele não só exige uma resposta, mas exige que a obediência seja reenfatizada, como se precisasse reafirmar seu controle absoluto sobre o corpo e a mente do soldado. Isso vai além da simples autoridade: o sargento busca "esmagar" qualquer sinal de resistência ou pensamento independente.

O rebenque é usado como um símbolo de poder. Ele estala na mesa e depois no chão, forçando o narrador a sentir o risco iminente do castigo físico, mas sem nunca realmente golpeá-lo de imediato. Esse elemento de intimidação é uma forma de tortura psicológica: o medo constante de ser atingido, sem saber quando. O sargento se diverte com isso, como um predador que joga com sua presa antes de consumi-la.

O olhar do sargento: controle absoluto

O olhar do sargento, descrito como "falcão atento à presa" e "olhos de cobra", é um elemento essencial para entender o domínio que ele exerce. O olhar do sargento é comparado a de um animal predador que observa sua vítima, minuciosa e pacientemente. Esse olhar não é apenas físico: é um olhar psicológico, em que o sargento lê o narrador de uma maneira que vai além do mero ato de observá-lo. Ele busca cada detalhe, cada "imperfeição" ou "fraqueza" que possa ser usada contra o narrador. Há uma sensação de que o sargento vê algo mais do que o corpo do soldado: ele vê suas fragilidades, seus medos, suas mentiras. Esse olhar representa o completo controle que ele exerce sobre o narrador, até mesmo sobre seus pensamentos.

O sargento e a metáfora do "leão"

A metáfora do "cristão na arena", que o narrador pensa enquanto está diante do sargento, é uma chave interpretativa poderosa. O narrador se vê como alguém à espera de sua destruição ou dominação, como um mártir. A referência ao leão lembra a eterna luta entre a ferocidade da opressão (representada pelo sargento) e a vítima (o narrador). O sargento parece agir como um leão entediado, testando os limites de sua vítima. A comparação entre o narrador e os "cristãos obrigados a negar sua fé sob pena de morte" amplifica ainda mais o sentido de um sistema de opressão implacável, onde a resistência interna do narrador parece inútil diante da força física e psicológica do sistema. Esse momento sublinha a vulnerabilidade e a fragilidade do ser humano, mas também a força da resistência interna, como se o narrador estivesse tentando encontrar algo dentro de si para resistir àquilo tudo.

A fragilidade do narrador e a tensão do corpo

O narrador, embora mentalmente presente e consciente da violência que o cerca, sente-se fisicamente vulnerável, quase como se seu corpo fosse um peso ou uma desvantagem. Sua "bunda nua" e a "sensação de tremor" na sua pele exposta refletem como ele se sente desprotegido. No entanto, é interessante notar como ele vai tentando se proteger de maneira psicológica. Mesmo estando fisicamente em uma posição inferior, o narrador vai usando o humor negro e a metáfora como formas de se defender psicologicamente.

O narrador: a luta pela identidade

Quando o sargento faz a pergunta "tu é filho das macegas?", há uma tentativa clara de despersonalizar o narrador. A questão vem cheia de desprezo e é um ataque direto à sua origem, como se questionasse a dignidade do narrador. No entanto, a resposta do narrador e a sua defesa interna, ao pensar sobre seu nome (Hermes) e sua identidade, revelam uma luta pela preservação da individualidade. Ao se declarar um "filósofo" e responder com precisão (mas também com certo medo e mentira), o narrador tenta se afirmar diante de um sistema que nega sua individualidade. A escolha de Filosofia como curso reflete essa busca por um significado maior, algo além da brutalidade do ambiente militar, e uma tentativa de se opor ao mundo opressor.

A libertação aparente e o novo jogo de poder

Quando o sargento finalmente o dispensa, o narrador experimenta um alívio, mas esse alívio é ambíguo. Ele se sente como se tivesse vencido, mas a verdadeira vitória, nesse contexto, é uma libertação da opressão momentânea. No entanto, ao sair, ele percebe que o sargento ainda continua seu jogo de poder. A última provocação do sargento, "Sen-tido!" e o olhar para os outros soldados, são um lembrete de que a opressão e a hierarquia continuam intactas, e o narrador, embora livre da obrigação militar, permanece parte de um sistema em que todos estão sujeitos à mesma violência simbólica e psicológica.


Em resumo, o trecho destaca o conflito entre resistência e subordinação, com o narrador buscando, apesar de sua vulnerabilidade, maneiras de manter uma identidade diante da força opressiva. A tensão é construída com maestria, explorando o corpo, a mente, e o sistema de poder como instrumentos de opressão, onde o narrador é simultaneamente um prisioneiro e alguém que tenta encontrar uma saída, seja através da mentira, seja através da internalização de sua luta.


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